Cem anos depois do fim da Guerra do Contestado, conflito sangrento que determinou as divisas entre Paraná e Santa Catarina, os casos de áreas em litígio ainda são comuns no Estado. Ao contrário do levante armado que vitimou cerca de 20 mil pessoas no século passado, as disputas por territórios entre estados e municípios agora se restringem ao campo judicial. Em tempos de tecnologia avançada de poderosos GPS com precisão de centímetros, muitas demarcações ainda são confusas por serem baseadas em leis redigidas há mais de 50 anos.
Em grande parte dos casos, a definição exata onde termina um município e começa outro não é prioridade dos gestores. No entanto, quando há interesses em jogo, a história ganha novos contornos. Nesse caso quem entra em cena é o Instituto de Terras, Cartografia e Geociências (ITCG), órgão responsável por resolver as questões demarcatórias no Estado. Com apenas dois servidores efetivos e dois estagiários, eles se desdobram para atender cerca de quatro demandas por mês. A minuciosidade necessária para o trabalho é um agravante.
A prioridade atual do órgão é ajudar a resolver a questão de quatro ilhas do Rio Paraná que são disputadas por Paraná e Mato Grosso do Sul. Duas delas, as ilhas Japonesa (10,53 km2) e Floresta (28,04 km2) ficam próximas a Porto Rico (Noroeste). A maior delas, a Ilha dos Bandeirantes, (55,52 km2) liga o distrito de Porto Camargo, em Icaraíma (Noroeste), a Naviraí (MS) pelo complexo de pontes da BR-487. Já a última delas, a Ilha Peruzzi (28,56 km2) fica nas proximidades de Guaíra e Mundo Novo (MS). As quatro ilhas pertencentes ao Parque Nacional de Ilha Grande são reconhecidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) como territórios sul-mato-grossenses.
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DIVERGÊNCIA CARTOGRÁFICA
A diretora de Geociências do ITCG, Gislene Lessa, explica que há uma divergência entre as bases cartográficas usadas pelo ITCG e as usadas pelo IBGE. Segundo ela, as leis originais, dos anos 1940, determinavam que a divisa entre o Paraná e o então Mato Grosso se daria pelo Rio Paraná. "A lei é muito vaga, deixa uma brecha grande em relação às ilhas fluviais daquela região", comenta. Um relatório técnico elaborado pelo ITCG em 2009 apontou alguns fatores que sugerem que as ilhas fazem parte do Paraná: a maior proximidade das ilhas às sedes municipais do Estado, maior número de povoados na margem paranaense do rio, a facilidade de locomoção das ilhas aos povoados do Paraná.
Duas reuniões com representantes dos dois Estados e do IBGE foram realizadas há dois meses no Paraná. Outra reunião deverá ocorrer no Mato Grosso do Sul nas próximas semanas. A expectativa de Gislene é que se chegue a um consenso. "A última reunião foi bastante produtiva, sinalizando para a efetivação de um acordo", conta. Já a Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural do Mato Grosso do Sul (Agraer) divulgou nota dizendo que trabalha para "garantir uma melhor delimitação nas linhas divisórias, sem ferir a soberania de estados vizinhos".
De acordo com Gislene, após a resolução do caso das ilhas, o próximo passo será retomar as negociações pelo território da Serra Negra, com 294 quilômetros quadrados, entre os municípios de Guaraqueçaba (litoral) e Barra do Turvo (SP). Atualmente, a área, que é maior que 246 municípios paranaenses do total de 399 existentes, é reconhecida como território paulista pelo IBGE. A lei que determina a divisa tem como referência as "águas vertentes" locais. A imprecisão do texto gera dúvida se a expressão se trata apenas ao córrego em questão ou a toda bacia hidrográfica. Para o ITCG, vale a divisa mais ao Norte; para o Instituto Geográfico e Cartográfico de São Paulo (IGC), mais ao Sul. Em caso de prevalecer o impasse em litígios estaduais, a questão é resolvida por uma câmara arbitral, de esfera federal.
BRIGA POR ROYALTIES
O Instituto de Terras, Cartografia e Geociências (ITCG) também atua para resolver questões territoriais entre municípios. Uma demanda que vem do Oeste do Estado é o maior desafio para a equipe: redesenhar o traçado original do Rio Iguaçu no trecho alagado para a construção do reservatório da Usina Hidrelétrica de Salto Osório, nos anos 1970. O objetivo é definir o limite exato entre Quedas do Iguaçu e São Jorge d´Oeste. Uma decisão do Tribunal de Justiça do Paraná (PR), de 2011, determinou que todos os royalties de produção de energia deveriam ser pagos a São Jorge d´Oeste, município que abriga a casa de força - estrutura que concentra os equipamentos responsáveis pela produção de energia.
Desde então, Quedas do Iguaçu tenta reverter a decisão no Supremo Tribunal Federal (STF). Para isso, pediu o estudo ao ITCG. Conforme os autos, o município de Quedas do Iguaçu afirma que o vizinho, São Jorge D’Oeste, não teria prova "cabal e conclusiva" de que as unidades geradoras de energia elétrica estejam situadas em seu território, pelo que não pode ser beneficiado com a totalidade do ICMS gerado pela Usina de Salto Osório. Por sua vez, o município de São Jorge D’Oeste juntou cópias ao processo de alvarás de funcionamento e licenciamento sanitário da empresa que explora a geração de energia, dando conta da localização em seu território.
O engenheiro do ITCG Amauri Pampuch contou que esse é um caso delicado que demanda uma análise minuciosa de documentos, mapas históricos e outros registros. "O traçar de uma linha, que muitas vezes parece algo simples, na verdade tem impacto significativo na vida de muitas pessoas", mensurou o tamanho da responsabilidade. Ele conta, porém, que as disputas por território são minoria entre as demandas. "O que temos mais são municípios que precisam saber onde termina suas terras para não realizarem benfeitorias no terreno vizinho", conta. Nesses casos, conta ele, a situação costuma ser mais tranquila.
Um exemplo disso é a imprecisão do limite entre Maringá e Sarandi. Segundo Pampuch, alguns domicílios ficam em uma área onde é impossível determinar a qual municípios eles pertencem. "A lei dizia que o limite se daria por uma linha reta entre dois córregos. A antiga área rural hoje é conurbada, o que dificulta determinar com certeza a linha divisória", explica. "Com essa linha reta imaginando passando em cima da casa, brincamos que uma mesma pessoa pode dormir numa cidade e almoçar na outra", conta. O engenheiro diz que em casos como esse, os municípios precisam acordar em lei um novo limite oficial.
PENDÊNCIAS DESDE O IMPÉRIO
O gerente de Base Territorial do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), José Henrique da Silva, observa que a divisão político-administrativa brasileira é uma das mais dinâmicas dos países ocidentais, seja na criação de estados e municípios como na alteração das divisas estaduais e limites municipais. Segundo ele, a dinâmica estabelecida nos últimos 78 anos, desde o estabelecimento da estrutura territorial pelo decreto-lei 311/1938, criou um cenário complexo de questões relacionadas aos polígonos estaduais e municipais.
"Diversas pendências territoriais da época do Império e da República Velha perduram ainda hoje sem solução, como legado da formação histórica do território nacional. Outras são de criação recente, face do tratamento inadequado que vem sendo dado a questão territorial no País", avalia. Ele ressalta também os avanços tecnológicos na área das geotecnologias. "A tecnologia traz um novo conhecimento do território e melhora os mapeamentos e o posicionamento dos acidentes geográficos de uma região em relação aos antigos produtos cartográficos, o que vêm comprovar a necessidade de atualização da legislação".
Silva expõe que a não atualização das leis em vigor ou a inexistência delas produz uma enorme demanda direcionada ao IBGE por disputas relativas à divisão do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), população, arrecadação de tributos e distribuição recursos, por órgãos e entidades. O gerente do IBGE explica que o trabalho de revisão e definição de limites municipais, de acordo com a Constituição de 1988, é competência dos Estados. Quando a questão territorial está relacionada à divisa estadual, o assunto é mais complexo, pois para grande maioria dos estados existe apenas uma descrição simples dos seus territórios feita em 1940.
Em relação às ilhas do Rio Paraná, Silva informa que foi estabelecido um acordo firmado entre as áreas técnicas do Mato Grosso do Sul e Paraná em 2010. Como no Censo de 2010, o órgão segue a considerar as ilhas como território sul-mato-grossense até que os estados estabeleçam um acordo final, com participação técnica do IBGE. Quanto a região da Serra Negra, ainda não houve uma rodada técnica entre os órgãos estaduais de São Paulo e Paraná para tratamento do assunto.
DISPUTA POR PONTO TURÍSTICO
Conhecida como a Terra das Cachoeiras Gigantes, Prudentópolis sempre propagandeou ter a maior queda d’água do Paraná: o Salto São Francisco, com 196 metros. Após análise territorial na década de 2000, a Secretaria de Meio Ambiente definiu que o Salto era o limite natural entre três municípios: Prudentópolis, Guarapuava e Turvo. A medida desagradou alguns moradores de Prudentópolis, que diziam ter tido o maior cartão-postal roubado. Na mesma época, Guarapuava inaugurou um parque municipal nos arredores do salto. Em 2007, um portal erguido pela prefeitura de Prudentópolis foi derrubado pela prefeitura de Guarapuava. O caso foi parar na delegacia.
Quase uma década depois, a discussão parece ter ficado no passado. Autoridades locais concordaram que o atrativo é um patrimônio natural do Estado e comum aos três municípios limítrofes. A diretora de Infraestrutura Turística da Secretaria de Turismo de Prudentópolis, Oksana Jadvisak, comentou que as três cidades trabalham juntas hoje para divulgar a beleza do Salto São Francisco. "Nós temos mais de 50 quedas d’água como atrativos e não há motivo para brigar pelo Salto São Francisco, ainda que ele seja o maior do Estado. A natureza é um bem comum de todos", comentou.
Para Oksana, os turistas acabam optando por conhecer o salto pelo lado de Guarapuava pelas melhores condições de estrada. A partir de Guarapuava, o turista percorre 42 quilômetros por uma estrada simples asfaltada e os últimos 12 quilômetros por uma estrada de terra em boas condições. "No nosso município, infelizmente, a estrada é mais rústica. Em dias de chuva, nem caminhonete alta de traçado consegue fazer o trajeto de quase 50 quilômetros". Segundo ela, não há previsões para de asfaltamento para o trecho.
A assessoria de imprensa da Prefeitura de Guarapuava informou que desde 2013, o "antigo paradigma em torno da disputa pela posse do salto foi rompido e os municípios começaram a trabalhar juntos ao longo da divisa natural da Serra da Esperança". A assessoria ressaltou que projetos em comum de sinalização geral e turística para toda a região, dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) Serra da Esperança, foram executados pelos dois municípios.
Um projeto de lei para a criação do Parque Estadual Serra da Esperança, localizado na sua quase totalidade, dentro do território de Guarapuava foi aprovado na Assembleia Legislativa.
Conforme a prefeitura, o projeto ainda está no processo de indenização dos proprietários. Para os turistas que quiserem conhecer o Salto, o município oferece o atrativo do Parque Municipal São Francisco da Esperança, com 84 hectares que contêm ainda o Salto das Pombas, com 100 metros de altura.