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A safra amarga do pioneirismo

08 ago 2003 às 10:59

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Lou Reed, hoje: álbum conceitual sobre um casal de drogados - Reprodução
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Trinta anos é a data redonda mais adorada pela indústria fonográfica. Quando o lançamento de um filme ou disco completa essa idade, pode esperar que vem versão do diretor, relançamento remasterizado com extras, álbum tributo. Considerando-se o ano que corre, o grande lançamento de 1973 foi "Dark Side Of The Moon", o álbum mais badalado da carreira do Pink Floyd – que está aí de novo nas lojas, com som em tecnologia SACD (Super Áudio CD), nova capa e outros mimos, só para comemorar os trintinha.

Como a história da música pop é contada da mesma forma superficial com que é contada a história da humanidade, os detalhes costumam ser suprimidos e esquecidos pelo caminho. No caso, esquecidos até por quem concretizou pessoalmente os fatos: em 2003, completam-se trinta anos do lançamento de "Berlin", terceiro álbum-solo de Lou Reed, e "Raw Power", de Iggy Pop e os Stooges. Nem Reed nem Iggy parecem querer fazer justiça a estes dois álbuns importantíssimos, pois não sinalizam que pretendem relembrá-los de alguma forma.

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Pelo contrário, a data redonda foi até "queimada" há poucos anos: em 1998, Reed lançou uma versão remasterizada de "Berlin" sem grande alarde. Um ano antes, Iggy Pop pôs nas lojas a famosa releitura de "Raw Power", onde o som cortante do disco, afundado pela desastrosa gravação original de 1972, foi parcialmente resgatado para dar uma idéia do barulho que os Stooges faziam ao vivo.

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Somando-se as vendas de "Berlin" e "Raw Power" desde 73, e elevando-se este número ao quadrado, é provável que não se chegue à metade de cópias de "Dark Side Of The Moon" que saíram das prateleiras; mas os álbuns de Reed e Iggy foram certamente mais importantes do que o clássico do Pink Floyd. O primeiro influenciou decisivamente o pós-punk, a partir de nomes cabisbaixos como Joy Division, Siouxsie And The Banshees e The Cure, e desembocou no rock gótico. O segundo praticamente criou o punk inglês, no final da mesma década.

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O ponto de convergência entre "Berlin" e "Raw Power", musicalmente muito diferentes entre si, é David Bowie, que quase simultaneamente bancou à época uma operação resgate de Reed e Iggy. Após sua saída do Velvet Underground, no começo dos anos 70, Lou lançou um primeiro disco-solo meio ignorado e estava quase desistindo de fazer música. Bowie o forçou a gravar um álbum produzido por Mick Ronson, seu guitarrista na Spiders From Mars, e supervisionou o projeto pessoalmente. O resultado foi "Transformer" (72), que contém o único sucesso comercial da carreira de Reed, "Walk On The Wild Side". Em um ano, o ex-guitarrista do Velvet vendeu mais do que na sua vida toda.


No caso de Iggy, os Stooges não existiam há quase um ano quando Bowie decidiu resgatá-los. A banda acabou em 1971, quando a Elektra, que os tinha contratado para a gravação de três álbuns – os dois primeiros foram "Stooges", de 69, e "Fun House", de 70 - , decidiu dispensá-los quando o grupo já estava com as músicas compostas para "Raw Power". Por motivos óbvios: os Stooges não vendiam. À época, James Williamson já era o guitarrista da banda (o que deslocou Ron Asheton para o baixo), mas o repertório não era o mesmo que seria registrado no ano seguinte – continha músicas hoje disponíveis apenas em discos piratas, como "I Got A Right".

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Em algum ponto de 1972, Bowie convenceu seu empresário, Tony DeFries, da produtora MainMan, a contratar Iggy. O cantor foi para Londres com Williamson, e, após testes frustrados com bateristas e baixistas locais, chamou os irmãos Asheton (Ron e Scott) para compor a seção rítmica. Era a volta dos Stooges.


Ao contrário de Iggy, Reed tinha muito a perder quando decidiu se arriscar em "Berlin". Afinal, "Transformer" tinha sido um sucesso e até hoje é descrito como o melhor álbum da carreira do cantor. Na hora em que devia lançar uma mera seqüência do que havia vencido nas paradas, Reed se aliou ao produtor Bob Ezrin, o mesmo que registrou "Destroyer", do Kiss, e "The Wall", do Pink Floyd, para gravar um trabalho conceitual.

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Em meio a arranjos grandiosos de cordas e metais concebidos por Ezrin e gelidamente executados – reza a lenda que o produtor impediu que Reed, guitarrista de parcos recursos técnicos, gravasse as guitarras do álbum - , Reed conta a história de um casal de drogados que se apaixona na capital alemã. O álbum abre com relatos leves e apaixonados do primeiro encontro ("Berlin"), a alegria dos primeiros dias de noivado ("Lady Day"), aborda os primeiros desentendimentos ("Caroline Says I") e os primeiros problemas com drogas ("How Do You Think It Feels"), antes de desembocar na metade realmente impressionante do disco, onde "Berlin" justifica o rótulo de disco de rock mais depressivo da história (cunhado pelo crítico Lester Bangs).


Em "Caroline Says II", Reed trata sem meias palavras das sessões de espancamento a que o marido submete a esposa ("Caroline diz/ ao se levantar do chão/ ‘você pode me bater o quanto quiser/ mas eu não te amo mais’"). Em seguida, em "The Kids", o uso ostensivo de drogas da mãe faz com que a Justiça retire a guarda das crianças do casal ("eles estão levando suas crianças embora/ porque dizem que ela não é uma boa mãe/ eles estão levando suas crianças embora/ porque ela estava fazendo ‘aquilo’ com irmãs e irmãos"). A parte final da canção é temperada com gritos supostamente verídicos de crianças chamando desesperadamente "mamãe!".

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Ao final da obra, a esposa comete suicídio ("The Bed"), sob considerações nada amáveis de Reed ("eu nunca teria começado se soubesse como ia terminar/ mas, engraçado, eu não estou tão triste/ que tenha acabado dessa maneira"). O disco fecha com "Sad Song", onde o marido tenta se livrar do remorso: "eu vou parar de desperdiçar meu tempo/ outra pessoa teria quebrado os dois braços dela".


O impacto de "Raw Power", ao contrário, era antes mais sonoro do que lírico. Bowie e DeFries não deram as caras no estúdio e deixaram que os Stooges fizessem o que queriam nas duas semanas de gravação. Como resultado, Iggy, no auge de sua fase junkie, cometeu sucessivos erros na captação dos instrumentos e acabou soterrando as linhas de baixo e o som da bateria. Por outro lado, valorizou até em excesso seus vocais e a guitarra alucinada de Williamson. A abertura, com "Search And Destroy", é exemplar: começa com uma introdução de guitarra quase inaudível, que subitamente é interrompida por um solo furioso. Em seguida, entram os vocais de Iggy, num volume pelo menos três vezes mais alto do que a seção rítmica.

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Trinta anos depois, o disco ainda assusta. Os berros guturais de "Your Pretty Face Is Going To Hell" não encontravam paralelo em nenhum outro artista da época, assim como as potentes "Penetration" e "Shake Appeal". Nas entrelinhas, as duas baladas do álbum, "Gimme Danger" e "I Need Somebody" (um sensacional blues à moda dos Stooges), mostram que Iggy e Williamson sabiam compor canções sutis em meio a tanta barulheira.


À época, Iggy e Reed colheram a safra amarga de tanto pioneirismo. "Eu estava cantando sobre coisas que machucam, tudo que as pessoas não querem ouvir no rádio", admitiu Lou , nos anos 90. É verdade. "Berlin" não é disco para ouvir arrumando a cama ou jogando Paciência no computador. É denso demais, assim como o álbum de Iggy é doentio, barulhento e agressivo em excesso – principalmente para os padrões de então.

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Ainda durante as gravações de "Raw Power", os Stooges já eram carta fora do baralho para a MainMan. A produtora boicotou a turnê de divulgação do álbum, que se restringiu a meia dúzia de apresentações, antes de dispensar a banda. Em 1974, após um mítico show em Detroit, quando uma gangue de motoqueiros atirou todo tipo de objeto no palco (tudo registrado no álbum ao vivo "Metallic K.O."), Iggy acabou com os Stooges alegando estar destruído pelas drogas e divergências com Williamson.


Reed nunca mais vendeu quanto em "Transformer", e Iggy só retomou sua carreira três anos depois, auxiliado novamente por Bowie, com seu primeiro álbum-solo, "The Idiot". A qualidade deste disco e do seguinte, "Lust For Life" (78), mais a valorização do nome de Iggy em meio à revolução punk, fizeram com que o cantor finalmente tivesse o reconhecimento merecido.

Hoje, "Berlin" e "Raw Power" são apenas um pouco mais badalados do que em 1973. O mundo aparentemente fez questão de esquecer os dois discos, ao mesmo tempo em que indiretamente insiste em relembrá-los, já que ambos contaminam 80% da música pop atual. Ao seu modo, a história do rock faz silenciosa justiça.


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