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A voz que falha ao vociferar

24 out 2003 às 10:59

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A notícia está aí, em rodapés de cadernos de cultura de grandes jornais, em notas superficiais de sites que sequer sabem que o primeiro nome do falecido se escreve com dois "t". Em nome do bom senso, é melhor evitar clichês do tipo "outro nome que se vai sem o reconhecimento merecido", "maldito" – é lamentável apenas que a obra do compositor e cantor norte-americano Elliott Smith não tenha conseguido emplacar no mercadão, mesmo amparada recentemente numa grande gravadora. Mas quando se verifica a brutalidade histérica que domina as paradas gringas (Beyoncé, Justin Timberlake, Linkin Park) e nacionais (Charlie Brown Jr, Detonautas), dá para compreender porque Smith nunca foi um campeão de vendas.

Steven Paul Smith (seu verdadeiro nome) foi encontrado em seu apartamento em Los Angeles na última terça-feira, dia 21, com um grande e único ferimento de faca no peito. Levado ao hospital, morreu uma hora depois. Tinha 34 anos. A polícia local investiga o caso, e as conclusões preliminares apontavam mais firmemente para a hipótese de suicídio até o fechamento desta coluna.

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Nascido em Nebraska, em agosto de 1969, Elliott esteve envolvido com música desde os 14 anos. Formou várias bandas até se estabilizar num conjunto, o Heatmiser, que formou em Portland no início dos anos 90 após terminar a faculdade. O grupo tinha entre seus integrantes Sam Coomes, que depois formaria o Quasi, banda underground que acompanhou Elliott em shows-solo.

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O Heatmiser lançou três álbuns e um EP entre 1993 e 96, que transitavam entre o hard rock e o country rock. Antes mesmo do fim da banda, Elliott gravou seu primeiro disco-solo, "Roman Candle" (1994), num gravador caseiro de quatro canais. Em 95, veio o segundo, "Elliott Smith", já pelo conceituado selo alternativo Kill Rock Stars. No ano seguinte, o Heatmiser acabou.

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O salto veio em 1997, quando Elliott lançou o incensado "Either/Or" – o diretor Gus Van Sant utilizou três músicas do disco, mais uma de "Roman Candle" ("No Name #3") na trilha sonora de "Gênio Indomável". O único tema inédito composto por Elliott para o filme, "Miss Misery", foi indicado ao Oscar de melhor canção original em 1998. A estatueta, como se sabe, foi para Celine Dion ("My Heart Will Go On"), numa vitória exemplar da mais afetada impostura pretensiosa sobre a simplicidade da timidez a serviço de corações partidos.


Elliott assinou com a Dreamworks (gravadora de Steven Spielberg) e lançou seus dois discos de maior sucesso, "XO" (1998) e "Figure 8" (2000). Desde o ano passado, estava trabalhando num sexto álbum, "From A Basement On The Hill". Seu último lançamento foi o single de duas faixas "Pretty (Ugly Before)", editado em agosto numa tiragem de apenas 5 mil cópias pelo selo Suicide Squeeze, de Seattle.

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Os álbuns pela Dreamworks já captavam a mutação do gênio – em seus primeiros discos, Elliott gravava todos os instrumentos e restringia os arranjos a violões, eventuais baixo, piano e bateria. A forma como alinhava dedilhados precisos e rápidos nas seis cordas, em progressões habilidosas de acordes, fez com que fosse comparado por toda a carreira ao cantor inglês Nick Drake, outro que morreu em circunstâncias que indicavam suicídio. Nos últimos discos, com dinheiro no bolso, Elliott adicionou guitarras mais destacadas e cordas à mistura, assim como um senso épico em melodias e harmonias. Sua música já estava mais próxima dos Beatles e dos discos-solo de Lennon.


Elliott valorizava como poucos a carga dramática de sua lira, em interpretações vocais tímidas, não raro com vozes dobradas, e que soavam constantemente embargadas, à beira de um ataque de choro. Em "Pitseleh", de "XO", a letra se escora em versos alusivos a suicídios: "o garoto silencioso está olhando para o tambor (da arma)/ para fazer o barulho que eu procurei silenciar". A mesma canção expõe o problema crônico de baixa auto-estima que acompanhou Elliott pela vida toda: "não sou metade do que eu queria ser".

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Ainda que tenha sabido manter sua vida privada longe dos holofotes, o cantor nunca conseguiu esconder seu passado de alcoólatra e viciado ("vou fingir através do dia com a ajuda de Johnny Walker Red", começa "Miss Misery"). Os primeiros comentários na internet após o anúncio da morte sugerem uma recaída nas drogas, e uma depressão desencadeada pelo fato de que Elliott não conseguia completar o sexto disco.


Mas seria injusto, para não dizer estúpido, catalogar a obra do cantor e compositor como mera ladainha melancólica. Muitas de suas canções estão impregnadas de uma ironia salutar, lindas declarações de amor sem viés trágico (ouça "Everything Reminds Of Her") e até fúria desajeitada, na qual palavrões espantam a auto-piedade. O momento mais tocante da balada "2.45 AM" é quando a voz de Elliott falha ao vociferar: "se você vai falar m*, é melhor falar alto".


E momentos solares não faltam em sua discografia: "Waltz 2# (XO)", "Angeles", "Baby Britain", "Independence Day", "Ballad Of Big Nothing", "No Name #3", "In The Lost And Found", "Wouldn’t Mama Be Proud?"… Apesar disso, dadas as circunstâncias trágicas de sua morte e a forma como a história da música pop adora preservar distorções, Elliott deve passar à posteridade como gênio torturado, herói depressivo – clubinho onde terá a companhia de músicos que nem chegam perto de seu talento, como Kurt Cobain ou Jim Morrison.

Nenhum dos discos de Elliott foi editado no Brasil – a trilha de "Gênio Indomável" saiu por aqui, mas está fora de catálogo. Se a curiosidade for grande, apele para as trilhas sonoras dos filmes "Keeping The Faith" (que traz "Pitseleh") e "Beleza Americana" (que inclui a versão de "Because", dos Beatles). Mas o melhor mesmo é recorrer ao amigo importador e comprar os últimos três discos do cantor. Eles trazem o creme da carreira de um homem de vida difícil que se demonstrou um patrono da delicadeza musical. E que cometeu a grosseria de partir cedo demais.


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