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Dez anos de cabeça vazia

08 abr 2004 às 11:00
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Provavelmente no dia 5 de abril de 1994, Kurt Cobain, que poucos dias antes havia fugido de uma clínica para viciados em drogas, foi para um quarto sobre a garagem de sua casa e se matou com um tiro de espingarda na cabeça. Três dias depois, o cadáver foi encontrado. O rock, como toda cultura banal e fútil, se apega a datas redondas, então é natural que você esteja lendo nesta semana mais textos na internet sobre os dez anos da morte de Cobain do que sobre os discos novos de Wilco e PJ Harvey, o álbum de Arnaldo Baptista que John, do Pato Fu, produziu, o show dos Pixies em Curitiba.

Que são assuntos que provavelmente lhe serão mais úteis no futuro do que a lamentação sobre o aniversário da morte de um cantor e compositor caipira, com sérios problemas de criação e de auto-estima, viciado em heroína. O que se reproduz no piloto automático em todas as mídias – vive-se a era do control C + control V – é que Cobain foi o último ídolo do rock, que salvou o gênero, que foi o nome mais talentoso do pop dos anos 90. Sua obra à frente do Nirvana é o caso mais agudo de superestimação da história da música. O motivo pelo qual ainda se chora sua morte, dez anos depois, está enraizado mais em razões sociológicas e afetivas do que propriamente no vigor de suas composições.

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Desde 1994, vários músicos muito mais talentosos do que Cobain morreram: Johnny Cash, Elliott Smith, Joe Strummer, George Harrison, John Lee Hooker, Jeff Buckley. Mas nenhum deles, na época de suas mortes, desfrutava do auge de sua popularidade (Buckley e Smith, por exemplo, sequer chegaram a atingir o sucesso planetário) ou da aclamação pela crítica. Explicação 1: Kurt Cobain é venerado dez anos após sua morte porque foi o último grande nome da história do pop a morrer no auge do sucesso e do prestígio junto à imprensa.

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O rock’n roll é uma cultura necrófila. Brian Jones (Rolling Stones) e Sid Vicious (Sex Pistols) foram instrumentistas medíocres, que pouco acrescentaram às bandas das quais fizeram parte. Ambos são pranteados até hoje porque morreram jovens e vitimados por excessos. As edições mais recentes da revista inglesa Q destacaram dossiês sobre Keith Moon (The Who), Vicious e o próprio Cobain. Todos vítimas da vida rápida do rock.

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Para citar Cobain de novo, sua carta de suicídio já foi usada como estampa em camisetas de fãs do Nirvana. Um bar roqueiro às margens da Lagoa da Conceição, em Florianópolis, tem em uma de suas paredes um pôster com o rosto de Cobain sorridente, com uma grande mancha de sangue e capas de jornais mancheteando seu suicídio ao fundo. Ninguém admite, mas a verdade é que as circunstâncias da morte do músico alimentam o fetiche de milhares de fãs. Explicação 2: Kurt Cobain é venerado dez anos após sua morte porque presuntos exercem um fascínio evidente sobre a cultura pop. Por uma razão simples e covarde – mortos não podem fazer mais nada, então não nos decepcionam. Ater-se a eles é mais seguro e confortável do que esperar algo dos vivos.


O rock’n roll é uma cultura para jovens. E jovens são em sua maioria criaturas mais conservadoras do que se pensa, mais preconceituosas do que se pensa, muitos menos transgressoras do que seria o desejável. Nada pode ser mais patético do que uma pessoa com menos de 30 anos dizendo que nada do que se faz no rock hoje presta. E jovens deste tipo não andam faltando por aí. O fato de que Kurt Cobain foi o último gênio do pop é um conceito admitido no piloto automático, que se reproduz de forma letárgica. Trata-se de um dogma – algo que jovens deveriam tentar quebrar mas não têm coragem de fazê-lo. Explicação 3: Kurt Cobain é venerado dez anos após sua morte porque a maior parte da juventude é conformista.

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O rock, vale lembrar, não é um conceito acabado. O que o torna distinto de outras manifestações da cultura pop é que tudo dentro dele pode ser saudavelmente questionado. Desse modo, se a preguiça de pensar não o impedir de ir um pouco além, reflita sobre como cada um dos méritos que são atribuídos ao Nirvana pode ser questionado.


O Nirvana quebrou as fronteiras entre alternativo e mainstream. Mentira. A explosão do indie rock (através do que seria chamado de grunge), que deu suporte para que bandas pouco convencionais como o Radiohead estourassem no final dos anos 90, foi embasada num conjunto de grupos, e não apenas em um. O R.E.M. abriu a porteira com "Green" (1988), sua estréia pela Warner, que mostrou que as bandinhas dos mini-selos alternativóides podiam chegar ao grande público.

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Pixies, Sonic Youth e Mudhoney vieram antes do Nirvana e não atingiram grandes platéias, mas escoraram musicalmente o processo – tanto que sua influência sobre o rock que veio a seguir foi muito mais perene. Os que conseguiram estourar, como Jane’s Addiction, Pearl Jam e Soundgarden, já tinham contrato assinado com gravadoras taludas antes da banda de Cobain adentrar o Top 10 da Billboard. Ou seja, o argumento de que o sucesso do Nirvana foi o responsável por tornar o rock alternativo atraente para as majors é pura bobagem.


O Nirvana salvou o rock. Mentira. Se for levado em conta o fator mercadológico, no sentido de que no início dos anos 90 um rock pretensamente de maior qualidade invadiu as paradas (o que é muito discutível – mas isso fica pra outra hora), tal fenômeno não foi provocado apenas por uma banda. Releia os dois parágrafos anteriores para entender. Se estiver difícil, tente reler mais de uma vez.

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O Nirvana foi o último sopro de renovação no rock. Mentira. Toda a obra de Cobain é derivativa. "Bleach" (1989) é uma coleção mal composta, mal tocada e mal gravada de recriações de Mudhoney e Black Flag. Nada mais que isso. "Nevermind" (1991) e "In Utero" (1993), bastante superiores musicalmente, demonstram a adição à receita do sabor pop dos Pixies e da produção grandiosa do metal farofa dos anos 80. Tudo que Cobain fez existia antes.


O Nirvana influenciou tudo o que veio depois. Mentira. Cobain influenciou outras bandas no esquema o-que-vende-é-pra-imitar, o que rendeu coisas lamentáveis como Silverchair, Bush e Vines. A imensa maioria das melhores bandas que se destacaram no rock a partir de 1994 (algumas delas até contemporâneas do Nirvana), como Flaming Lips, Wilco, Radiohead, Pavement, Queens Of The Stone Age e Los Hermanos, soaria exatamente igual hoje se Kurt Cobain nunca tivesse nascido.

O Nirvana foi uma banda desimportante que hoje é cultuada por motivos errados. Com o medo do sucesso que tinha, Cobain aceitaria de bom grado a primeira metade dessa frase. Já a segunda lhe agravaria as dores no estômago – como faz com muita gente que não se matou em 5 de abril de 1994.


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