Viva o ladrão. Coldplay, Travis, Doves, os novos de Blur, Flaming Lips e Mercury Rev estão aí para comprovar que não existe banda mais roubada no pop contemporâneo do que o Radiohead. Tanto que o próprio quinteto inglês não se acanhou em furtar um pouco de si mesmo em "Hail To The Thief" (EMI), seu sexto álbum de estúdio, que chega na próxima semana às lojas causando o frisson de sempre: faixas que vazaram na internet, ingressos para a turnê britânica esgotados em questão de horas após colocados à venda, a eterna possibilidade da banda fazer shows no Brasil...
Lá fora, as resenhas ao novo disco têm variado entre reações contidas, saudações entusiasmadas e (muita) má vontade na hora de se analisar o novo repertório, comparado – claro que sempre de forma desfavorável – à obra-prima "Ok Computer" (1997). Não é possível ter composto o melhor disco de rock dos últimos trinta anos e ser a banda mais importante e influente do mundo sem que isso atraia o nariz torcido de muita gente.
Um crítico de Seattle lamentou que o novo trabalho traga tantas referências ao passado da banda, mas foi justamente por ter tentado tão desesperadamente se livrar do fardo de ser ele mesmo (nos álbuns "Kid A", de 2000, e "Amnesiac", do ano seguinte) que o Radiohead deixou de ser uma unanimidade no mundo do rock. O tal resenhista listou uma série de "plágios" de trechos dos discos anteriores – o fã realmente conhecedor vai perceber outros tantos.
Em "I Will", a base se restringe a um dedilhado de guitarra. As mesmas notas, invertidas, geraram "Like Spinning Plates", de "Amnesiac". Em "Where I End And You Begin", o vocalista Thom Yorke se lamenta de "dinossauros que rondam a terra", a mesma queixa do personagem atormentado de "Optimistic", de "Kid A". Os versos do refrão de "Myxamatosis" são idênticos aos do estribilho de "Cutooth", lado B do single "Knives Out", de 2001.
As referências, entretanto, vão muito além dessas meras redundâncias líricas, e são principalmente musicais. A balada ao piano "Sail To The Moon" parece uma versão compacta de "Pyramid Song", com guitarras dedilhadas substituindo a orquestra. A maçaroca de sons invertidos de "The Gloaming" (que poderia ter sido tirada do disco sem dano) já foi ouvida em "Amnesiac". "Go To Sleep", o provável segundo single do álbum, parece saída das sessões de "The Bends" (1995), na sua junção de violões, refrão assobiável e a guitarra maníaca de Jonny Greenwood.
A definição mais feliz que pode ser feita de "Hail To The Thief" é de que se trata de um meio termo entre "Ok Computer" e os "difíceis" dois discos que vieram a seguir. Para quem acha que usar do próprio passado é algo imperdoável, este sexto álbum representa o primeiro momento, desde o início de sua carreira, em que o Radiohead não tentou romper de alguma forma com o que já tinha feito antes. O próprio Thom Yorke admitiu o fenômeno, numa entrevista na semana passada, em que o vocalista descreveu o novo disco como "um ‘Ok Computer’ 2", e disse que o Radiohead já esteve musicalmente neste local. Ele também prometeu que em dois anos a banda vai estar "irreconhecível" – melhor aproveitar, portanto.
Porque, talvez não estejam deixando você saber, mas "Hail To The Thief" traz tantos momentos mágicos que é inferior na discografia da banda apenas a "Ok Computer". A brilhante "2+2=5" começa com dedilhados apressados de guitarra, traz um intermezzo quase incompreensível e explode num orgasmo de rock pesado. Difícil imaginar música melhor para abrir os shows da banda de agora em diante.
A já citada "Sail To The Moon", apesar da incômoda semelhança com o passado, é uma das baladas mais lindas já compostas pela banda. Sobre uma melodia de pura candura, Yorke espeta Bush: "talvez você se torne presidente/ mas saiba discernir certo de errado/ ou então na enchente você vai construir uma arca/ e velejar rumo à lua". A primeira música de trabalho, "There There", de batida tribal, refrão forte e guitarras econômicas, é a segunda coisa mais simples que o Radiohead gravou em anos.
Segunda, porque há "I Will". A letra parece uma clara referência aos ataques americanos ao Iraque ("eu vou me esconder/ num bunker sob o chão/ não vou deixar que nada aconteça com nossas crianças"), mas a canção já estava composta há anos. Aparece num pequeno trecho do documentário "Meeting People Is Easy", de 1998. Amparados apenas numa guitarra, dois Thom Yorke cantam a melodia petrificante em tons diferentes, antes do final épico, onde encontram a mesma nota.
Fecham o disco a bela "Scatterbrain", onde a batida é programada num teclado Casio, e a candidata a clássica "A Wolf At The Door", cantada de forma apressada e confusa, próxima do rap. Se as letras do restante do álbum seguem o padrão Radiohead, onde a sugestão impera sobre o sentido, desta vez Thom Yorke parece explícito: "eu mantenho o lobo longe da porta/ mas ele me chama/ me chama ao telefone/ me fala sobre todas as maneiras como ele vai me ferrar/ vai roubar minhas crianças/ se eu não pagar o resgate/ e eu nunca mais vou vê-las/ se contar para os tiras".
São momentos geniais como este que lembram como o Radiohead foi uma banda única na história do rock, e que continua sendo. Se Yorke cumprir a promessa de desfigurar o som do conjunto, o mundo pode ter muito a perder. E os detratores do Radiohead poderão finalmente ter argumentos para destroçar a banda. Por enquanto, só a má vontade anda justificando tanto repúdio.