O castigo físico contra a criança e o adolescente dentro do próprio lar é uma das formas mais comuns de violência familiar cometida no Brasil e no mundo, praticada há tempos e socialmente aceita como método corretivo pela maioria dos pais. Para muitos, dar uma palmada ou puxar a orelha dos filhos quando se comportam mal, entre outras formas de castigo corporal, é uma maneira eficaz de educá-los, contribuindo para o controle e a disciplina.
Segundo o relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) lançado no último mês de agosto, somente 24 países proíbem os castigos físicos legalmente, e destes, apenas três são membros da Organização dos Estados Americanos (OEA): Uruguai, Venezuela e Costa Rica. Por outro lado, países como Peru, Brasil, Canadá e Nicarágua apresentaram recentemente iniciativas legislativas para proibir o castigo corporal contra as pessoas com menos de 18 anos. Em seu documento, a CIDH pede que os Estados proíbam toda forma de violência contra a infância e adolescência e solicita políticas públicas que enfoquem integralmente os direitos da criança. Estabelece, ainda, que até 2011, os países formalizem mecanismos de prevenção contra a violência infantil, incluindo medidas que possibilitem aos meninos e meninas denunciar maus tratos e, principalmente, serem ouvidos.
O relatório Mundial sobre a Violência e a Saúde (2002) e o Relatório sobre a Violência contra as Crianças, produzido pelo especialista Paulo Sérgio Pinheiro em 2006 para a ONU, conceituam a violência como o uso deliberado da força física ou do poder contra uma criança por uma pessoa ou por um grupo, seja por uma ameaça ou de forma efetiva, que cause ou tenha muitas probabilidades de causar prejuízo efetivo ou potencial à saúde dessa criança, à sua sobrevivência, seu desenvolvimento ou sua dignidade. Uma grande proporção de crianças e adolescentes em todo o mundo sofre significativa violência em seus lares. O estudo afirma, ainda, que grande parte da violência exercida contra o público infanto-juvenil permanece, por muitas causas, acobertada, dificultando a aplicação da justiça. Uma das razões para isso é o medo: muitas crianças têm temor de denunciar os episódios de violência que sofrem. Em outros casos, pais e mães, que deveriam proteger seus filhos, também por medo preferem o silêncio, principalmente se o responsável pela violência é o cônjuge ou algum membro da família.
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A aceitação social da violência é um fator fundamental. Tanto as jovens vítimas quanto os agressores podem aceitar a violência física, sexual e psicológica como algo inevitável. E a disciplina cumprida mediante castigos físicos e humilhantes, intimidação e abuso sexual, com frequência é percebida como algo normal, especialmente quando não produz danos físicos "visíveis" ou imediatos.
Na publicação Situação Mundial da Infância 2007, o Fundo das Nações Unidas para a Infância – Unicef aponta que, todos os anos, 275 milhões de meninos e meninas de todo mundo sofrem violência doméstica e padecem das consequências de uma turbulenta vida familiar. No próprio lar podem ser identificados diferentes tipos de violência como a física, gerada ao se aplicar castigos corporais; a verbal e psicológica, manifestada por palavras ofensivas, xingamentos, humilhações, gritos e insultos; e a violência sexual contra crianças e adolescentes, que consiste em praticar condutas sexuais seja por ameaças, agressão física ou chantagem emocional.
Mesmo que meninos e meninas não sejam o alvo imediato da violência familiar, as consequências para seu desenvolvimento futuro são grandes e graves. Estudos demonstram que algumas crianças que foram expostas à violência doméstica acabaram se transformando também em agressores, perpetuando o círculo vicioso durante gerações. Pesquisas realizadas em alguns dos principais países em desenvolvimento – como China, Colômbia, Egito, Filipinas, Índia, México e África do Sul – indicam que existe uma notável correlação entre a violência contra as mulheres e a violência contra a infância.
Já na maioria dos países da América Latina, segundo a organização Save the Children Suécia, a magnitude do problema do maltrato infantil não está suficientemente visível. As estatísticas que descrevem a violência física contra meninos e meninas correspondem a fontes de informação parciais, uma vez que em nenhum desses países existem dados oficiais centralizados que quantifiquem as diferentes intervenções de instituições públicas e privadas que cuidam das vítimas infanto-juvenis.
Lesões físicas e psicológicas
A eficácia do castigo físico diminui com o tempo e o grau de severidade tem que ser aumentado sistematicamente. O castigo corporal contra crianças e adolescentes pode lhes causar não só lesões, mas danos permanentes e até levá-los à morte. Atitudes extremas como essas constituem o maltrato infantil, forma distinta de castigo físico. Nos Estados Unidos, uma revisão de 66 casos de maltrato infantil concluiu que tanto o abuso quanto o maltrato ocorrem na maioria das vezes como "uma extensão de ações disciplinares que, em algum momento, e aos poucos, cruzam a linha que separa o castigo corporal autorizado do maltrato infantil não autorizado".
O relatório mundial sobre Violência e Saúde da Organização Pan-americana de Saúde, divulgado em 2003, investigou provas de que enfermidades importantes da idade adulta – entre elas a cardiopatia isquêmica, o câncer, doença pulmonar crônica, a síndrome do intestino irritável e a fibromialgia – podem estar relacionadas com experiências de maltrato durante a infância. Em casos extremos, apanhar quando pequeno pode trazer, ainda, consequências mais graves para a saúde, como transtornos psiquiátricos e comportamento suicida.
De acordo com uma investigação feita pelo professor Murray Straus, da Universidade de New Hampshire, nos Estados Unidos, meninos e meninas castigados fisicamente apresentam, depois de quatro anos, um coeficiente intelectual baixo em comparação com os que nada sofreram. No grupo mais jovem, as crianças que não apanharam apresentaram 4 pontos a mais em seu coeficiente de inteligência do que as crianças que foram castigadas fisicamente. No grupo de crianças entre os 5 e 9 anos de idade, aqueles que não apanharam tiveram 2.8 pontos a mais em seu coeficiente intelectual que do os que sofreram castigos físicos, depois de quatro anos.
Já um informe elaborado por profissionais da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, destacou que o castigo físico põe em risco as crianças, gerando problemas de saúde mental e comportamento anti-social. Os castigos corporais não melhoram a conduta dos pequenos, como se pensa. Ao contrário disso, as vítimas tendem a perder a concentração nos estudos e aumentam suas possibilidades de se tornarem pessoas agressivas, competidoras e com predisposição a desenvolver, no futuro, relações violentas.
Segundo Márcia Oliveira, oficial de Programa para a América Latina e o Caribe da Save the Children Suécia, a temática dos castigos físicos no Brasil já foi vista com muita resistência. Mas foi a partir de 2005 que começou a surgir adesão de alguns grupos locais, provavelmente como reflexo do movimento internacional que estava sendo configurado. "A violência punitiva no Brasil começou com os escravos, depois com a mulher. A mulher lutou muito contra isso e nem em relacionamentos é mais permitido qualquer tipo de agressão, principalmente depois da lei Maria da Penha. Até com os animais é proibido o uso violência, nos circos existe todo um cuidado, uma cobrança. Só com as crianças que a violência física continua sendo permitida. Temos que pular esta etapa de igual forma, ainda mais quando o que sustenta esta prática é o mito da validade do castigo com fins de educação", defende.
Márcia lembra que muitas pessoas não percebem os castigos físicos e humilhantes como uma forma de violência. E é essa violência que pode, em alguns casos, levar a criança para a rua. "Não é tanto a questão da pobreza, mas é a violência que leva a criança e o adolescente para a exploração sexual, para as drogas, para a prática do bullying. Não é uma causa única, mas contribui para o processo. Uma criança ou um jovem que pratica o bullying contra os colegas, por exemplo, normalmente está refletindo o que vive em casa, propagando a violência para o ambiente escolar", aponta. "Se há presença da violência no espaço de maior proteção da criança, que é a família, imagina nos outros espaços", lamenta Márcia.
Para saber mais acesse a rede "Não Bata, Eduque" (www.naobataeduque.org.br).